Polêmica ambulante

vale do taquari - comércio nas ruas

Polêmica ambulante

A origem dos produtos comercializados de forma ilegal em vias públicas passa despercebida pelas autoridades. Não há investigações na PC. E nas poucas apreensões para coibir a prática o Paraguai surge como principal fonte do contrabando. Lojistas se unem para barrar o avanço e sugerem um disque-denúncia para o problema que perdura faz mais de três décadas

Polêmica ambulante
Vale do Taquari

Era 15 de maio de 1989. A principal notícia nos periódicos da época era o alargamento da calçada da rua Júlio de Castilhos, a via mais comercial da cidade-polo do Vale do Taquari. Junto com a euforia alimentada pelas expectativas de mais lucro e movimento de clientes para os lojistas, uma preocupação antiga: os ambulantes.

A manchete era em tom ameaçador. “Prefeitura não permitirá vendedores no calçadão”. No texto, algo semelhante ao discurso dos atuais gestores. “Uma vez concluída a obra, o governo pretende exercer uma rigorosa fiscalização e vigilância, para evitar a presença de ambulantes ao longo do trecho, evitando que o comércio venha a ser prejudicado”.

Passados quase 30 anos, a promessa do então governo municipal ainda não se concretizou. Pior. O problema só aumenta. Leodir Degasperi, 22 anos de comércio estabelecido em Lajeado, é testemunha ocular deste retrocesso. “Já acompanhei quatro prefeitos em diversos mandatos, mas nenhum resolveu. É só enrolação, falta de vontade política. Está cada vez pior.”

Degasperi demonstra desânimo. E o sentimento é “geral” entre a maioria dos comerciantes, diz. “Todos querem uma atuação mais rigorosa por parte das autoridades. Não compreendemos por qual razão as fiscalizações seguem tão intensas contra nós, que pagamos impostos, e praticamente não existe em relação aos ambulantes”, reclama.

 

Na principal cidade da região, foram 21 apreensões desde janeiro de 2017. A última delas em 28 de março deste ano. Já em Arroio do Meio, por exemplo, cidade com 1/4 da população lajeadense – 82 mil contra 20 mil habitantes –, foram 31 apreensões só nos nove meses deste ano, e 48 no ano passado. Em Teutônia, foram 32 só em 2018.

“Não tem como mensurar o prejuízo. E não olham para o nosso comércio. Sempre que nos reunimos, só falam dos eletrônicos na rua Júlio de Castilhos. Mas o ambulante está por toda a cidade. Na área da alimentação, é muito mais ‘violento’. Vendem em tudo que é lugar proibido. Sabem que o governo não faz nada. E esse pessoal vem de fora. De tudo que é lugar.”

Presidente do Sindilojas, Francisco Weimer corrobora com a reclamação. O empresário de Lajeado se queixa da pouca preocupação com a origem dos produtos vendidos ilegalmente nas ruas da cidade. “Tem que dar prejuízo no bolso”, afirma. Em Lajeado, porém, não há investigação em andamento na Polícia Civil (PC) acerca de venda ilegal de produtos por ambulantes.

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Juliano Stobbe

“Quem compra é receptador”

Delegado da PC de Lajeado, Juliano Stobbe confirma as poucas ações para coibir, principalmente, a venda de produtos contrabandeados. “Faz muito tempo que não apreendemos esse tipo de material. Há cinco anos havia mais volume de apreensões, principalmente de CDs e DVDs piratas.”

 

Questionado sobre a origem dos produtos apreendidos, confirma a falta de investigações. “Sob o meu comando, não”, atesta. Hoje, além dos CDs e DVDs piratas que ainda são vendidos livremente no centro, é comum encontrar ambulantes com relógios, roupas, capas de celulares, perfumes, brinquedos, aparelhos de som, frutas e flores.

Stobbe também alerta os consumidores sobre a prática criminal. “Quem compra também é receptador. Todo aquele que adquire produto do crime. Desde que saiba da condição de o objeto ser de origem criminosa”, explica.

Disque-denúncia

Sobre a falta de investigações e punições aos comerciantes ilegais, Weimer sugere a criação de um canal direto entre lojistas, governo municipal e órgãos de segurança pública, como a própria PC e a Brigada Militar (BM). “Em relação à origem dos produtos, pedimos a presença da polícia nas reuniões para que seja feita uma investigação”, confirma.

Segundo Stobbe, existe a “figura criminal” no ato de quem vende sem alvará ou oferece produtos sem origem lícita, bem como de quem compra. “Pode configurar quebra de patente de produtos que têm a sua industrialização regulamentada. Há regras internacionais de importação que são desrespeitadas.” A pena é de até dois anos de prisão em regime aberto.

Rota de contrabando

“Não sabemos de onde vem o produto”

Secretário de Planejamento de Lajeado, Rafael Zanatta vê com entusiasmo a movimentação recente do Sindilojas e da CDL. A ideia é realizar campanhas para conscientizar o consumidor. “É um problema de inúmeras cidades no Brasil e no mundo. As alternativas são incremento na fiscalização e na conscientização, para a população não comprar esses produtos.”

Sobre a atuação das polícias no combate ao contrabando e descaminho, Zanatta demonstra preocupação. “A BM nos ajuda sempre que pode, mas tem inúmeras ocorrências para lidar. E para momentos de apreensão, eles são necessários. Se não estamos com a polícia, a própria população não deixa recolher as mercadorias. Sem contar as ameaças que recebemos.”

Zanatta também se queixa da falta de investigações acerca da origem dos produtos. “Não sabemos de onde vêm essas mercadorias, quem está por trás disso”, resume o agente público. “Pelo que sei, o crime é da esfera federal. E assim todos sabem quem nós somos, mas nós não sabemos quem está nos observando”, reforça.

Rota de contrabando 1

Questionado sobre o índice de agressões sofridas pelos fiscais da prefeitura, Zanatta é taxativo. “Verbalmente, todos foram agredidos. Inclusive, eu”, garante. “E a maioria dos ambulantes não retorna para reaver as mercadorias apreendidas.” Com isso, salas da Seplan estão repletas de produtos contrabandeados. A maior parte deve ser leiloada em breve.

Diversas origens para os produtos

Agente da Polícia Rodoviária Federal (PRF), Dimitrius Franco confirma o país vizinho, Paraguai, como principal “fonte” de produtos contrabandeados e apreendidos principalmente na BR-386, uma das rotas mais utilizadas para esse tipo de crime e também para o chamado crime de descaminho – com pena mais amena em relação ao contrabando.

O número de apreensões nos dois postos da PRF no Vale do Taquari – Lajeado e Tabaí – ocorre com certa frequência. Segundo Dimitri, foram 21 apreensões de mercadorias de bazar entre janeiro de 2015 e o dia 20 de setembro de 2018. Em 2015, foram quatro em Lajeado; em 2016, duas em Lajeado; em 2017, dez em Lajeado e três em Tabaí. Já neste ano, houve uma em Montenegro e a última, no dia 20 de julho passado, novamente em Lajeado.


Cidades se protegem contra excesso de ambulantes

Apesar de gerar forte discordância com lojistas e comerciantes estabelecidos nas principais cidades da região, o comércio de ambulantes é legalizado em diversos casos. Em Teutônia, por exemplo, foram 110 licenças em 2018 e só 29 em 2017.

Em Lajeado, foram 156 licenças concedidas até dia 19 de setembro deste ano. Em Taquari, foram 42 alvarás em 2017 e 36 este ano. Em Arroio do Meio, 17 e 12, respectivamente. Mesmo assim, é consenso entre as câmaras de dirigentes lojistas que a falta de fiscalização prejudica os comércios fixos, principalmente em pequenas cidades.

Em Muçum e Dois Lajeados, por exemplo, municípios com pouco menos de cinco mil habitantes, os governos instalaram placas nos acessos principais, com avisos aos ambulantes sobre as limitações: “O comércio irregular é proibido”. Na sequência, o número da lei e uma provocação à sociedade: “Denuncie aos órgãos competentes”.

Cidades como Muçum e Dois Lajeados, na região alta do Vale do Taquari, instalaram placas para coibir atuação

Cidades como Muçum e Dois Lajeados, na região alta do Vale do Taquari, instalaram placas para coibir atuação

Em Estrela, tramita na câmara um projeto de lei já apelidado de “Tolerância Zero” aos ambulantes que vendem produtos manufaturados. Quem defende a proposta é o secretário da Fazenda, Henrique Lagemann. “Quem sai prejudicado é a comunidade. Apreendemos muita roupa, cinto, meias. Queremos evitar produtos industrializados que competem com nosso comércio. A lei precisa ser rígida.”

A proposta encontra barreiras entre os próprios parlamentares. Vereador de oposição, Norberto Fell (PPS) assinou pela ilegalidade como presidente da Comissão Especial do Legislativo. “Dois colegas devem acompanhar. Mas comerciantes já estão me questionando. E a eles eu digo que já existe lei adequada, o que não existe é a fiscalização. Então, proibir tudo não resolverá”, resume.

“Estamos de mãos amarradas”

Delegado da 13ª Delegacia da Receita Estadual, Jorge Humberto Pozza também demonstra desânimo com a situação dos ambulantes ilegais. Ele reclama especialmente da Súmula 323 do STF. No texto, consta que é “inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”.

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“Faz cerca de dez anos que estamos de mãos atadas, pois estamos proibidos de apreender mercadorias. Apenas os produtos importados, mas dificilmente conseguimos distinguir a origem dos produtos. Então, cabe à prefeitura, pois é outra legislação. Para o governo municipal, implica no Código de Posturas.”

A delegacia tem 11 fiscais para 42 municípios. “Esses pequenos produtos não são nosso principal alvo”, admite. “Mesmo assim, as turmas de volantes mantinham limpas as ruas centrais antes da súmula.”


“Se viver do medo, tu não trabalha”

Leonir Kuhn Leite veio de Novo Hamburgo com a caminhonete cheia de abacaxis. Segundo ele, tudo comprado em São Leopoldo, mas veio do Rio de Janeiro. “Chegou 16 toneladas de lá.” Ele não tem um ponto fixo. Fica “passeando” pelas ruas centrais de Lajeado, sem alvará. “Também vendo em outros municípios, como Santa Cruz do Sul, Santa Maria.”

Segundo ele, além de não permitir a venda nas vias de maior movimento, o valor do alvará concedido em Lajeado é considerado “inviável” por ele. “Já colocam o valor lá em cima para tu não pagar. E por vezes não ‘tiro’ o valor por dia. Hoje preciso batalhar para ‘tirar’ R$ 200. Daí não é viável, e acaba sendo melhor trabalhar assim, escondido”, admite. “Tem que se virar, já levei ‘corridão’. Já perdi produto. Mas é assim. Se vai viver do medo, tu não trabalha.”

Morador de Novo Hamburgo, Leite compra o abacaxi em São Leopoldo e comercializa, faz 20 anos, os produtos em Lajeado. Tudo sem alvará

Morador de Novo Hamburgo, Leite compra o abacaxi em São Leopoldo e comercializa, faz 20 anos, os produtos em Lajeado. Tudo sem alvará

Sobre a fiscalização, diz que a situação já foi mais ríspida. “Hoje mesmo eles pediram para eu ‘dá um tempo’. Na verdade, por enquanto eles estão “legais” conosco. Em outros tempos, era diferente”, afirma, sem reclamar do ritmo das vendas. “Em uma manhã, já vendi praticamente tudo. Vai rápido”, diz ele, que atua de forma itinerante faz 20 anos na cidade.

“Mando R$ 200 para o Senegal”

Próximo ao vendedor de abacaxis, dois senegaleses vendem óculos de sol, carteiras, capas de celular, relógios, entre outras mercadorias de valor menor. Eles chegaram da capital do Senegal, Dakar, faz quatro anos. Passaram por São Paulo, Porto Alegre, e ainda hoje atuam em outras cidades do interior gaúcho. Os produtos, afirmam, têm nota.

Ambos já tiveram produtos recolhidos pela fiscalização, e temem nova investida da Seplan. Questionados sobre a origem da mercadoria, citam mais de uma cidade. “Eu compro na Rua 25 de Março, em São Paulo.” O amigo, em Porto Alegre.”

Nenhum deles garante estar feliz. Querem voltar para o Senegal e rever amigos e familiares. O mais velho, de 35 anos, nunca viu o filho, hoje com 4 anos. “A passagem custa mais de R$ 9 mil. E hoje eu consigo mandar uns R$ 200 a cada mês para ajudar a família”, conta, para logo apanhar a mochila e seguir caminhando em direção à Júlio de Castilhos. Ao lado dele, outros dezenas de ambulantes ocupam a Júlio e adjacências, bem ao contrário do anunciado em 1989.

Rodrigo Martini: rodrigomartini@jornalahora.inf.br

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