“As pessoas acabam virando reféns do Facebook. Então resolvi sair”. A atitude da comerciária Ivete Weiss, 45, surgiu dos incômodos em ser cobrada pelas amigas para curtir as fotos que haviam publicado. “Era uma perda de tempo.”
A comerciária moradora de Lajeado e que trabalha em Arroio do Meio tinha a conta fazia quase dez anos. “Comecei a me dedicar a outras coisas. Hoje curto mais a minha filha.” Vai fazer dois anos que retirou a conta. “Não volto mais”, afirma.
No mundo, frente ao escândalo do vazamento de dados à Cambridge Analytica, Mark Zuckerberg, criador do Facebook, precisou dar explicações ao congresso norte-americano. Estima-se que 87 mil pessoas tiveram dados pessoais coletados pela empresa de consultoria política.
As informações foram usadas para construir perfis psicológicos dos eleitores. Os usuários recebiam constantemente anúncios e matérias dirigidas. A consultoria teria sido contratada pelos líderes da campanha de Donald Trump. A investigação aponta que houve manipulação psicológica por meio do Facebook, o que poderia inclusive ter tido relação com a vitória do republicano na corrida à Casa Branca.
O termo fake news apareceu nesse contexto. O surgimento desse sistema de usar as redes sociais para divulgação de informações com viés político e sem comprovação é uma incógnita. O filósofo, professor da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador de pesquisa sobre consumo de informações na internet, Pablo Ortellado, afirma que essa conduta foi exportada pelo Brasil após as eleições de 2014.
Sites e blogs partidários se baseiam em técnicas básicas do jornalismo para distorcer informações, transformar boatos em fatos e propagar opiniões como se fossem notícias. “Isso começou no Brasil”, sustenta Ortellado.
Na pesquisa coordenada por ele, foi constatado que são produzidas 3,5 mil notícias sobre política nacional por dia. Dessas, cerca de 200 são compartilhadas pelo Facebook. Pelos dados, a rede social criada por Zuckerberg se tornou a segunda fonte de informação, pois abrange 60% da população. Fica atrás apenas da televisão, presente em 98% dos lares no país.
Rastilho de pólvora
Jornalista e professor da ESPM-Sul, Paulo Pinheiro dedicou quatro anos do doutorado para pesquisar o funcionamento dos algoritmos e como eles priorizam as informações repassadas aos usuários. “A informação que tenho não é boa. Uma notícia falsa tem 70% de chance a mais de se propagar do que uma verdadeira.”
Por isso, diz, notícias absurdas, com informações misturadas a opiniões, viralizam nas redes sociais. “As pessoas compartilham situações fora de contexto. Muito para reafirmar suas próprias convicções.”
Vida em uma bolha
O algoritmo da rede social trabalha para que o usuário tenha contato com aquelas pessoas ou assuntos ligados ao perfil psicológico dela, diz Pinheiro. “Por meio das curtidas e compartilhamentos, o internauta é direcionado. A tendência é ficar perto das pessoas que pensam como você. Isso cria um elemento de polarização.”
Os usuários da rede social, resume o pesquisador, vivem em um mundo onde todos concordam com ela. Quando não aceitam suas convicções ou opiniões, criam-se atritos e discussões. Por isso, o discurso do ódio é tão presente nas interações pelo Facebook, acredita Pinheiro.
Antídoto é o jornalismo
Quando as pessoas não diferenciarem mais uma informação da outra, e colocarem o jornalismo credível e de qualidade na mesma vala das fake, o risco é o desinteresse pelo noticiário real. “Cria-se uma apatia geral sobre qualquer tema.” Essa é a consequência vislumbrada pelo professor Pinheiro. “O jornalismo tem um desafio daqui para frente. É deter ou reduzir as fake news. Não é fácil. É um problema mundial. Os jornalistas têm compromisso com a verdade, o fake não.”
Para ele, o propósito é fortalecer o discurso de grupos de poder ou de ideologias políticas. Em meio à crise no Facebook, a empresa poderia fazer algo para conter essa conduta nociva à sociedade. “Os fakes trazem dinheiro para a empresa devido ao modelo do negócio baseado na economia de cliques.”
As notícias sem comprovação e a exposição individual são os motivos para o morador de Lajeado, Claitor Derly Fagundes dos Santos, 55, evitar as redes sociais. “Percebo que há manipulação.”
Para ele, as informações mais credíveis estão nos jornais impressos devido à forma de apuração. Depois vem o rádio e por último a televisão. “O texto de jornal exige uma apuração mais rica. A consequência é uma informação mais completa.”
Conduta leviana com impacto imensurável
O ato de compartilhar publicações com conteúdos ofensivos ou difamatórios pode resultar em imputação legal. A advogada Sabrina Regina Schneider resume: “Esse é o assunto do ano. Por mais que as fakes estejam, na maioria das vezes, ligadas ao assunto político, os reflexos jurídicos podem atingir as pessoas.”
Conforme a advogada, tanto produzir matérias ou informações distorcidas quanto disseminar esses conteúdos nas redes ou em aplicativos tem imputação penal, tanto no campo civil quanto no penal. “Vale as mesmas regras para o ambiente virtual quanto para o convívio nas ruas.”
Ainda assim, a dificuldade é conseguir chegar em quem elaborou o material, pois a origem é anônima. Um problema para apontar um responsável. Com isso, não há responsabilização. “Por isso, muitas vezes não se consegue reparar o dano sofrido pela vítima.”
O boato e a fofoca fazem parte do convívio social. Mas antes ficavam em uma esfera restrita. Quando se trata de um assunto propagado nas redes sociais, o impacto é imensurável, avalia Sabrina. “As pessoas perderam o filtro. Não se compartilha algo só por que recebeu.”
Sabrina atua em um processo de exposição de imagens íntimas na internet. “Essa consciência é zero, tanto que nessa ação um dos responsáveis por compartilhar as fotos disse à Justiça se sentir injustiçado, pois todos estavam fazendo a mesma coisa.”
Dificuldade em chegar aos responsáveis
Uma das vítimas dessa conduta nas redes foi o radialista João Pedro Stacke devido a uma mensagem distorcida em que a foto dele dividia espaço com um vídeo de dois homens fazendo sexo em um matagal. “De uma hora para outra, recebi uma notícia que jamais iria esperar. Depois disso, parece que todos estavam me olhando, me condenando. Outros vieram conversar para me dar força para continuar.”
A velocidade com que o vídeo se propagou surpreendeu o radialista. “Primeiro na região, depois chegou a Porto Alegre, em seguida estava em São Paulo. Até nos Estados Unidos comentaram esse fake.”
“Eu estou tranquilo. Não sou eu naquele vídeo. Alguém fez a montagem tentando me comparar com outra pessoa com o pretexto de me atingir.” No outro dia após a divulgação dos vídeos pelo WhatsApp, Stacke registrou ocorrência. “Sei que não há nada de concreto ainda para chegar ao responsável.”
O radialista espera que se chegue ao responsável pela montagem, a qual ele chama de crueldade. “Eu quero ver na cadeia.”
Atualização dos fakes
O avanço da tecnologia de computação gráfica, das ferramentas de edição de vídeos e áudios torna ainda mais perigoso o universo noticioso nas redes sociais. Autoridades não conseguem combater o formato atual e a nova fronteira das fakes news traz desafios ainda maiores.
A nomenclatura também mudou, tornou-se “deep fake news”. Com o uso digital para sintetizar vídeos, pode-se aplicar o rosto de alguém em cenas de sexo ou em outra situação comprometedora.
O uso dessas tecnologias para manipular a opinião pública dificulta ainda mais a separação do que é realidade e do que é mentira. Essa ameaça se sobrepõe ao direito individual e atinge o convívio democrático.
Eleição ameaçada
Para o professor Pinheiro, trata-se de um risco que pode atingir o futuro da nação, ainda mais por este ser um ano eleitoral. “O que me preocupa é que temos um número excessivo de fakes. Com isso, as pessoas passam a acreditar que a informação verdadeira não é valiosa. Mas é ela que dá condições para o eleitor decidir o voto.”
O tecnólogo Aviv Ovadya criou o termo “infocalipse”, o apocalipse da informação. “Esse alerta foi visto como exagerado quando o autor apresentou. Passados dois anos, estamos frente a frente com esse problemão”, diz Pinheiro.
Avadya apresentou as preocupações de uma crise iminente de desinformação para uma equipe de tecnólogos na Área da Baía de São Francisco. As informações coletadas por ele apontavam para os ajustes nos incentivos das plataformas midiáticas que priorizavam informações enganosas ou polarizadas.
O pesquisador considerou que a economia baseada nos cliques, compartilhamentos, anúncios e dinheiro em detrimento da qualidade da informação trazia uma “desinformação viciante e tóxica.” O alerta teve pouco impacto para os diretores das plataformas digitais.
Isso repercute no comportamento do internauta. A autoafirmação das próprias crenças reduz a capacidade de ampliar o conhecimento, acredita Pinheiro. “Como as pessoas compartilham assuntos dos quais acreditam e não aceitam o contraditório, nesta eleição podem ser eleitos políticos com base em mentiras.”
Entrevista
“O Brasil exportou esse método”
Pablo Ortellado é filósofo, professor universitário e colunista do jornal Folha de S. Paulo. Para ele, a propagação das fake news tem propósitos políticos. Em ano eleitoral, acredita, essa conduta tem potencial para interferir no resultado do pleito.
A Hora – Como conceituar o fenômeno fake news? Qual o interesse nessa propagação de notícias mentirosas?
Pablo Ortellado – É muito difícil conceituar. O termo nasceu na cobertura da eleição norte-americana de 2016. Neste momento começou a ser adotado. Partimos do princípio de que ele está a serviço de grupos políticos, usados por blogs.
O que temos visto quando falamos disso é o fenômeno de sites de discurso político polarizado. São informações de combate que usam diversos expedientes. O formato de propagação nem sempre são mentiras ou invenções. Também há informações fora de contexto, especulações como fatos, distorções.
Essas “notícias” surgem de sites com padrão editorial rebaixado, que visa manter a sociedade dividida para o debate político. Chamamos de sites hiperparditários ou hiperengajados. As publicações ressaltam aspectos ligados à defesa da ideologia na qual está ligada. A partir disso, mistura tudo, reportagens e matérias ao mesmo tempo passam opiniões. É um recorte conveniente. O método é o sensacionalismo e o exagero.
No que a disseminação dessas fakes pode prejudicar a sociedade e a própria democracia?
Ortellado – Formando a opinião política. Se coloca um rótulo nas pessoas atacadas. Na USP, fizemos uma pesquisa opinativa. Vimos que mais de 50% das pessoas que usavam a rede social para se informar acreditavam em boatos. Como no caso da história que o filho do Lula era dono da Friboi. Ou do juiz Sérgio Moro ser filiado a um partido político.
A maioria dos entrevistados concordava com os boatos. Isso trouxe efeitos políticos reais. Não temos como dizer o quanto isso foi prejudicial em termos sociais e democráticos. Mas há como confirmar que tudo foi fabricado com propósitos políticos.
Quanto à credibilidade nas notícias. Isso pode provocar um processo de apatia geral?
Ortellado – Pode acontecer. Está havendo um processo generalizado de perda de confiança nos veículos de comunicação. No Brasil, diferente dos Estados Unidos, onde a maioria das empresas é identificada com a esquerda, os grupos ligados à direita atacam os veículos de comunicação tradicional.
Aqui, a participação é polarizada, inclusive com uma disputa entre os próprios veículos. Grupos dizem que o jornal é ligado aos “golpistas”. Para outro, o mesmo veículo é “petralha”. Enquanto isso, a grande imprensa faz um ataque constante às fake news.
Como combater esse fenômeno? Como a sociedade pode se proteger?
Ortellado – Na verdade, penso que a sociedade não precisa se proteger. Ela precisa é mudar, afinal, ela é participante. Essa crise de difusão ocorre porque somos apaixonados pelas nossas convicções políticas.
Os sites maliciosos só têm alcance devido à participação e ao compartilhamento das pessoas. Então, a sociedade também é responsável. São as pessoas que divulgam as fake news.
Qual o papel do jornalismo neste cenário?
Ortellado – Frente a essa descrença, precisamos resgatar o bom jornalismo. Como o viés político e partidário está carregado, é preciso ancorar as interpretações em fatos bem apurados. Essa ideia está em xeque devido ao discurso geral, pois muitas vezes a narrativa fica em primeiro plano.
Tendo em vista que estamos em um ano eleitoral. Essa propagação das fake news pode interferir no resultado?
Ortellado – Tenho certeza que vai atingir. Em 2014 já foi assim. Geralmente esse fenômeno tem efeitos políticos. Nas últimas eleições gerais, foi tão ruim que diversas instituições de pesquisa estudaram as redes sociais no pleito. Esse foi o laboratório para as eleições na Inglaterra e nos Estados Unidos. O Brasil exportou esse método.
Filipe Faleiro: filipe@jornalahora.inf.br