“Justiça de Deus”. Era essa a frase estampada na camisa preta usada pelo incendiário no momento em que ele ateou fogo na sala de recepção do Setor de Emergência do HBB, no fim da tarde desse domingo.
Um homem de 50 anos, principal suspeito do crime, foi preso por volta das 17h de ontem. Casos de agressões e ameaças aos funcionários daquela ala já são recorrentes dentro do hospital.
Apesar disso, o fato de domingo é tratado como excepcional pela direção do HBB. Pelo menos nove dos 15 funcionários que atuavam no momento precisaram de atendimento em função da fumaça.
A intenção dos diretores é aplicar definitivamente o plano de limitar os atendimentos ao público no setor, que atende pacientes de diversos municípios via SUS.
Vice-presidente do HBB, Marcos Frank confirma a vontade da diretoria. Para os administradores do hospital, os atendimentos que não configuram urgência e emergência precisam ser prestados em outras instituições de saúde, como as unidades básicas dos municípios e a própria UPA.
Para tal, a direção estuda a possibilidade de remodelar toda a fachada do setor, retirando a porta de entrada para pessoas, deixando apenas um acesso para ambulâncias. Dessa forma, apenas pacientes em estado grave – infartos, traumas causados por acidentes, entre outros – serão atendidos naquela ala do hospital.
“Essa discussão fatalmente virá à tona. E mostra os riscos cada vez maiores de se atender em Pronto-Socorros”, afirma Frank. “O hospital, na emergência, acaba fazendo atendimentos que não caracterizam urgência e emergência. E justamente por isso demoram mais. Isso com certeza será repensado”, reforça o vice-presidente.
Entretanto, o dirigente do HBB não estima prazo para concretizar tal mudança, debatida faz pelo menos cinco anos na mídia lajeadense. “Ainda não há decisão tomada. Mas não dá para trabalhar aceitando esse risco. Todos que trabalham na emergência estão traumatizados. E é cada vez mais difícil encontrar profissionais que queiram trabalhar em emergência.”
“É um ‘front’ de guerra”
Frank é enfático ao defender a restrição de atendimentos no Setor de Emergência. Ele confirma uma alta rotatividade de funcionários no local, muito em função do medo. “É muito processo, muita ameaça. É um ‘front’ de guerra”, resume o vice-presidente. Em 2017, por exemplo, foram registrados 12.485 atendimentos no setor, uma média de 34 pacientes por dia.
Diretor-executivo do HBB, Cristiano Dickel reforça a intenção da diretoria. “A emergência não pode ficar com porta aberta. Ela precisa ser emergência referenciada. Lá se atende casos graves”, afirma ele. “Só pode entrar de ambulância ou veículo em caso de urgência. Porta aberta, pessoas entrando caminhando não dá. Não é para isso”, reitera.
Para ele, se o setor continuar atendendo casos de “febre e dor de barriga”, sempre haverá reclamações em função de possíveis atrasos nas consultas.
Ontem, a reportagem solicitou o número de consultas de baixa complexidade registrados no setor, mas, até o fechamento da edição, a assessoria do HBB não conseguiu precisar. Em 2014, esse índice chegava a 70% dos atendimentos.
UPA não tem pediatra
Uma das reclamações da direção do HBB é a falta de pediatras na UPA. O secretário de Saúde, Tovar Musskopf, confirma a informação. Segundo ele, diversos processos seletivos foram abertos para buscar a contratação desse profissional. Porém nunca houve interessados. O próprio hospital enfrenta, faz anos, esse mesmo problema.
“A UPA não conta com pediatra. Quando abre processo seletivo, sempre tentam. Mas nunca um pediatra se inscreveu para trabalhar. Ninguém tem interesse. Diante disso, um clínico-geral atende todos os casos. E quando necessário, em casos graves, direcionamos as crianças ao HBB. Mas na UPA, nenhum médico tem restrição à faixa etária”, confirma Musskopf.
Sobre a possibilidade de restrição dos atendimentos no HBB, o secretário demonstra tranquilidade. Segundo ele, a maioria dos pacientes que se dirige ao hospital pode ser atendida na UPA, onde há, inclusive, uma UTI para até 24h. “Creio que tudo se trata de uma questão de cultura. As pessoas se acostumaram a ir até o HBB. Ocorre também pela facilidade, por morarem no centro. São vários fatores.”
Mesmo com a ausência de pediatra, a UPA vem proporcionando fôlego ao HBB. Antes da inauguração da unidade, em março de 2014, o hospital registrava uma média mensal próxima de três mil pacientes no Setor de Emergência. Hoje, o número soma cerca de mil atendimentos por mês. Entretanto, a unidade não atende moradores de outros municípios.
Detalhes do atentado
O enredo teria iniciado ainda pela manhã. Por volta das 7h, o suspeito preso e a mulher levaram o filho, de 4 anos, até a UPA. Lá, ele foi diagnosticado com amigdalite bacteriana. “Uma dor de garganta, doença comum em crianças daquela idade. Sem necessidade de encaminhar ao HBB”, resume Musskopf.
Ainda de acordo com o secretário de Saúde, o clínica-geral da UPA prescreveu um antibiótico para a criança tomar por até sete dias. Também foi receitado um outro remédio para dor e febre, mesmo com a criança não apresentando quadro febril no momento. “O paciente não estava com febre, e o antibiótico receitado pode demorar até 72 horas para surtir efeito.”
Passadas oito horas e meia, o casal chegou ao Setor de Emergência do HBB, com a criança. Conforme o Boletim de Atendimento, foram registrados às 15h30min. Nesse momento, foi realizado o acolhimento do paciente por parte dos enfermeiros. Trata-se de uma triagem, em que são feitos questionamentos e exames básicos para avaliação da gravidade. O menino não apresentava febre.
A família foi encaminhada para uma outra sala de espera. Nesse mesmo intervalo de tempo, de acordo com relatos dos profissionais que atuavam no setor, o plantão estava “um inferno”. Havia três pacientes em estado grave: um com insuficiência respiratória aguda, outro com parada cardiorrespiratória, e um outro que havia cortado parte da perna com uma motoserra.
Naquele momento, além do filho do suspeito, havia uma outra criança aguardando atendimento no local. Era o filho de Anderson Hoppen, morador de Santa Clara do Sul, que aguardava atendimento desde às 14h45min. “Nosso filho não foi atendido. Desde a noite passada com dor de garganta. A UPA não nos atende. E o cara estava antes de nós. Tinha mais gente nervosa. Eles nos explicavam que havia três emergências.”
A chefe do plantão foi então avisada sobre ameaças feitas pelo suspeito contra a recepcionista do setor. Nesse momento, ela mandou avisar que o atendimento demoraria, e também pediu para deixarem a Brigada Militar (BM) de sobreaviso. Quando chegou o momento de chamar as crianças, um outro paciente entrou no local vomitando sangue, e foi prontamente atendido.
Às 17h37min, e ainda sem atendimento para o filho, o suspeito deixou o hospital com a criança e a mulher. Uma hora e 10 minutos depois, ele teria voltado, sozinho e de moto. Entrou com um facão em punho e uma mochila nas costas. Hoppen ainda estava lá e, percebendo o possível atentado, deixou a recepção às pressas, junto com outros pacientes que aguardavam atendimento. “Ele mandou a recepcionista sair. Disse que não tinha nada a ver com ela.”
O suspeito deixou o facão no guichê da recepção. A recepcionista deixou o local. Eram 18h47min. Ele retirou uma garrafa plástica de 1,5 litro da mochila, e começou a despejar sobre a mesa e os computadores um líquido – supostamente gasolina. Ainda ficou 19 segundos procurando o isqueiro. Encontrou o objeto no bolso esquerdo da calça e então ateou fogo no recinto. Depois fugiu.
Naquele momento, havia 15 funcionários – entre médicos, enfermeiros e recepcionista – no setor, e pelo menos dez pacientes. Três desses foram removidos para a UTI do HBB, e os demais para salas do Pronto-Atendimento. O primeiro combate ao incêndio partiu de um enfermeiro. Logo depois, o Corpo de Bombeiros chegou ao local e ajudou a amenizar os riscos.
Suspeito nega
De acordo com o delegado Juliano Stobbe, o suspeito preso por volta das 17h de ontem nega ser o autor do incêndio. “O homem estava em casa, onde também estavam a mulher e o filho, além do advogado. Mas ele nega. Diz que não era ele.”
O suspeito não tem emprego fixo. Faz “bicos”. Conforme Stobbe, admitiu ter ficado nervoso com a demora no atendimento, e diz que “só deu um soco no vidro”. “Ele será indiciado pelo crime de incêndio. Não será por tentativa de homicídio, pois não houve feridos”, resume o delegado. A pena é de três a seis anos de reclusão, acrescida de multa. “Mas pode aumentar para oito anos, pois ocorreu em um hospital.”
Esse mesmo homem responde a outro processo pela morte de um senegalês, na noite de 25 de fevereiro de 2016, em Caxias do Sul. Nesse caso, a Delegacia de Homicídios e Desaparecidos tem duas versões: legítima defesa, em função de suposto assédio contra a mulher do suspeito, e homicídio doloso decorrente de briga por dívidas de serviços prestados.
Rodrigo Martini: rodrigomartini@jornalahora.inf.br