As 23 vacas de Nelseo Schulte, 50, estão sem água desde segunda-feira, 26. Na madrugada de ontem, apenas 1,5 litro saiu das torneiras, quantidade insignificante para o abastecimento da família e do plantel de novilhas e bovinos do produtor de leite. “Estamos desesperados”, desabafa.
Para garantir a sobrevivência dos animais, Shulte percorre um trajeto de chão batido de cerca de três quilômetros, pelo menos cinco vezes por dia, levando grupos de vacas para se hidratarem em poços de vizinhos. “Sem água, elas vão morrer”, ressalta. Acostumado a produzir 200 litros por dia, o agricultor diz que doará os animais se o abastecimento não for restabelecido.
Shulte está entre as 106 famílias do interior de Santa Clara do Sul que ficaram parcial ou totalmente sem água após a secagem do poço artesiano situado em Nova Santa Cruz. Ele abastece moradores de Chapadão, Arroio Alegre, Sampainho e parte de São Victor, já pertencente ao município de Forquetinha.
Ainda que os estatutos originais da associação impeçam a interligação de chiqueirões e aviários na rede, são pelo menos dez criatórios de suínos que usam a água para os animais. Sem contar as propriedades de gado leiteiro.
A redução na vazão de água foi constatada no sábado, 24. “Percebemos porque começou a chegar água suja nos reservatórios”, informa o presidente da associação, Adelar Barkert. Problema semelhante aconteceu há dois anos, mas não durou tantos dias, complementa. Desde sábado, o fluxo diminui gradativamente. Ontem, os três reservatórios com capacidade total de 60 mil litros estavam vazios.
A comunidade pede, desde segunda-feira, intervenção do Executivo para o transporte de água. O primeiro caminhão-pipa começou a levar água do centro de Santa Clara do Sul até a localidade ontem de manhã, quatro dias depois de constatado o problema.
De acordo com Barkert, a primeira leva de nove mil litros serviu apenas para encher os encanamentos. “A situação é dramática. Precisamos muito da sensibilidade e do apoio da prefeitura nesse transporte para mais dias”, emenda o produtor Valdir Schonhals.
O governo municipal informa que soube da situação na manhã de segunda-feira, 26, quando integrantes da associação foram à prefeitura relatar o fato. Cerca de 25 mil litros foram transportados ontem para amenizar o problema.
Segundo o secretário de Obras, Agricultura e Meio Ambiente, Edson José Mallmann, não há um “diagnóstico preciso” para identificar o motivo da secagem do poço. Para ele, uma “possível causa” é a falta de chuvas que atinge a região nos últimos meses. “Será feito um estudo de toda a bacia para avaliar as melhores medidas a serem adotadas”, assegura.
Impacto na produção
Criador de suínos e bovinos, Heitor Althaus, 31, divide a propriedade com mais oito pessoas. São três famílias ao todo. Após a secagem do poço, a medida adotada foi o racionamento. O restante de água ainda existente na caixa é usado apenas para as necessidades básicas, como tomar banho e cozinhar.
Para as dezenas de animais, a saída foi transportar água, ainda que suja, de um poço improvisado na propriedade. Sem potabilidade, o líquido é oferecido aos animais e utilizado para a limpeza dos chiqueiros. “A gente sabe que não é uma água boa, mas é a única que tem. Melhor do que não tomar nada”, conforta-se.
Novo poço
A comunidade aguarda autorização prévia da Secretaria Estadual de Meio Ambiente para a perfuração de um novo poço tubular. A expectativa é de que o documento seja liberado hoje, 1º. Se a previsão se confirmar, a obra já inicia amanhã, 2.
Conforme o diretor da empresa Chafariz – contratada para o serviço –, Gilmar Trojaike, uma equipe trabalhará durante o fim de semana para que o abastecimento seja normalizado até a próxima semana.
Até lá, os 106 usuários contam com o auxílio do poder público no transporte de água. O novo poço será aberto ao lado do antigo, com uma profundidade de 150 metros. A capacidade de extração de água prevista é de cerca de 76 m³ por dia.
Entrevista
“Superexploração do sistema”
Tiago de Almeida é geólogo e professor no curso de Engenharia Ambiental da Univates. A seguir, ele fala sobre uma possível superexploração do sistema e alerta para outros casos.
A Hora – O que pode causar a secagem de um poço após mais de 20 anos de uso?
Tiago de Almeida – Isto pode ser causado por superexploração do sistema. A recarga do aquífero que abastece esse poço pode ser menor que a quantidade de água que está sendo extraída do local. Outra causa pode ser a má construção do poço, sem revestimento em áreas de arenitos. Nesse caso, o arenito pode desmoronar ao longo dos anos e as vazões vão diminuindo aos poucos. Em Santa Clara do Sul, tem-se presença de basaltos em superfície e em pequenas profundidades, abaixo pode chegar aos arenitos portadores de grandes quantidades de águas. Os arenitos sofrem menos desses fenômenos, mas os basaltos só têm água em fraturas (rachaduras), sofrem mais por, que se o poço está em um sistema de fratura, se você fizer outro no mesmo sistema, os dois estarão tirando água de um mesmo local.
O aumento da perfuração de poços pode ter relação com o fenômeno?
Almeida – Pode sim.Um sistema aquífero é composto por uma camada ou mais de arenitos ou rochas que têm uma quantidade de água e que recebem recarga. Esse aquífero tridimensional tem uma quantidade de água finita, ou seja, pode ser comparado com uma piscina ou um tanque, onde essa piscina ou tanque pode em um dia ser furada em um local e começar a perder um pouco de água. No outro dia, outro furinho, no dia seguinte, outro, e assim por diante. Vai chegar um ponto em que a quantidade que entra de água na piscina é menor que a quantidade saindo pelos furos (novos poços).
A situação no interior de Santa Clara do Sul serve de alerta para outras localidades?
Almeida – Com certeza, porque os aquíferos não estão sendo bem estudados. Há um sério desconhecimento aprofundado da capacidade dos aquiferos da região, das recargas, dos pontos de poluição, etc. Ainda sofremos com empresas que executam mal as obras, fora de norma, sem estudos hidrogeológicos, querendo apenas ganhar seu dinheiro com a obra.
O que pode evitar problemas semelhantes?
Almeida – Contratar um geólogo para acompanhar a obra e se puder que esse faça o projeto do poço, deixando somente a execução pela empresa perfuradora. Se a empresa de perfuração tem geólogo, exigir que na perfuração esse profissional acompanhe a obra, para descrever as rochas corretamente e disponibilizar essas informações corretas ao sistema de outorga do Estado.
Quais medidas por parte do poder público poderiam ajudar as famílias prejudicadas? E o que pode ser feito para evitar novos problemas?
Almeida – O poder público deve melhorar os sistemas de cadastramento de poços e gerar estudos aprofundados que possam ser utilizados pelos profissionais. Para ajudar essas famílias prejudicadas, teria que verificar se existe algum outro ponto para que tenha uma captação melhor. A longo prazo, investir em estudos regionais e locais dos aquíferos, fazer campanhas mais pesadas para o racionamento e não desperdício de água, financiar as instalações de estruturas para aproveitamento da água da chuva, licenciar obras com estruturas que possam infiltrar a água da chuva de volta ao subsolo e por aí vai.
Alexandre Miorim: alexandre@jornalahora.inf.br