Relação familiar:  da discussão ao homicídio

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Relação familiar: da discussão ao homicídio

As mortes de Luciano André Ferreira, 45, e Luciana Reiter, 38, relembram casos chocantes de homicídios ocorridos entre parentes. Ambos foram assassinados faz uma semana pelo ex-companheiro e o filho da mulher, insatisfeitos com o relacionamento amoroso entre as vítimas. Para analistas, os seguidos crimes passionais evidenciam enfraquecimento do poder familiar.

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Vale do Taquari – A participação do adolescente de 16 anos no assassinato da própria mãe reacende questionamentos sobre os valores da família. No caso do duplo homicídio de Ferreira e Luciana, o rapaz, coagido pelo pai Delmar Tavares de Oliveira, 51, teria combinado um encontro com as vítimas no último sábado para facilitar a emboscada.

03O caso provoca inquietação na pequena comunidade de Linha Boa Esperança, em Cruzeiro do Sul, onde os corpos foram localizados na madrugada do dia seguinte. Os moradores estão incrédulos com a frieza do adolescente, pois tentaram consolá-lo de todas as formas durante a perícia na cena do crime.

Surpreendeu, inclusive, o delegado responsável pelas investigações, José Romaci Reis. Para a delegada especializada em crimes familiares, Débora Aparecida Dias, tal fato demanda atenção: “um filho ajudar a matar a mãe é um caso inusitado, porque geralmente ele a ajuda contra situações de violência”. Esse foi o primeiro registro de feminicídio na região.

Poucas horas antes de o crime ser percebido, outro homicídio passional ocorria a alguns quilômetros dali. Em Venâncio Aires, Júlio César Kunz, 36, invadiu o Hospital São Sebastião Mártir para matar a ex-companheira Mirian Rosele Gabe, 34. Ela aguardava exame de corpo delito a fim de comprovar agressões físicas cometidas pelo homem, descontente com o fim do relacionamento.

A psicólgoca Celina Darde relaciona a maioria dos casos de violência familiar a questões de ciúmes patológico, transtorno de personalidade e o sentimento de domínio do agressor sobre a vítima.

O número de homicídios tentados e consumados envolvendo vínculo passional preocupa órgãos de segurança do Vale do Taquari. Segundo dados da Delegacia Regional de Polícia, apenas neste ano 11 pessoas foram assassinadas na região, havendo ainda outras sete tentativas.

Comandante da Polícia Civil, delegado João Antônio Merten Peixoto, manifesta apreensão diante da recorrência de casos. Esses são os mais delicados, pois a polícia não tem como prevê-los, avalia.

Repercussão nacional

Nos últimos anos, casos de assassinatos envolvendo pessoas com relações próximas, sejam namorados, pais ou filhos, chocam a sociedade. Situações de grande repercussão nacional se assemelham às ocorridas no Vale do Taquari (relembre fatos abaixo).

Uma das maiores manchetes do país ocorreu em outubro de 2002: Manfred Albert von Richthofen, 49, e a mulher, a psiquiatra Marísia, 50, foram mortos pelos irmãos “Cravinhos” com a participação da filha do casal, Suzane Louise von Richthofen, então com 18 anos.

As vítimas desaprovavam o namoro entre a jovem e Daniel Cravinhos de Paula e Silva, 21, um dos participantes do homicídio. Em depoimento à polícia, Suzane confessou a autoria e alegou: “foi por amor”.

Outro caso de grande repercussão, do assassinato de Bernardo Uglione Boldrini, 11, morto em abril do ano passado na cidade de Frederico Westphalen. O pai Leandro Boldrini, a madrasta Graciele Ugulini e a amiga da família, Edelvânia Wirganovicz, teriam cometido o crime sob a justificativa de que o menino atrapalhava o novo relacionamento de Boldrini.

Mulheres sofrem mais

Delegada especializada em crimes familiares e contra mulheres, Débora Aparecida Dias, relaciona homicídios passionais à discriminação. O principal motivo é o fim dos relacionamentos ou casos de traição: o companheiro pensa que a mulher pertence a ele, como um objeto.

O problema está ligado à cultura do machismo brasileiro, avalia, acentuada no Rio Grande do Sul. “Tivemos evoluções na sociedade, mas as mulheres continuam morrendo pelas mãos de maridos, namorados ou ex-relacionamentos.”

Até os anos 80 eram comuns casos em que o marido assassinava a mulher, alegava traição e acabava absolvido sob argumento de defesa da honra. Tal possibilidade foi extinta após mudanças na legislação, mas mesmo assim, os crimes continuam crescendo. Entre os anos 2000 e 2010, 43,7 mil mulheres foram assassinadas no Brasil. “Os motivos são os mesmos de 50 anos atrás.”

De acordo com Débora, a questão de gênero fica clara quando são analisados os motivos alegados pelos assassinos. Traições femininas ou mulheres que acabam um namoro são constantemente citadas. O mesmo não ocorre quando o homem trai ou termina um relacionamento. “Trabalho faz 15 anos na polícia civil e nunca ouvi falar de uma mulher matar o marido por causa da relação.”

Ela não vê fim a esse tipo de violência enquanto não houver investimentos específicos em educação, cujos resultados serão percebidos apenas em médio ou longo prazo. Reforça a necessidade de que vítimas de agressões denunciem tais fatos à polícia e busquem proteção.

Crimes de difícil prevenção

Débora corrobora a opinião do delegado João Antônio Merten Peixoto sobre a dificuldade de prever crimes ocorridos dentro de núcleos familiares. Conforme estatística, 40% dos assassinatos de mulheres ocorrem em casa.

A maior dificuldade é que as vítimas evitam denunciar agressões com medo de represálias. “Além disso, muitas mulheres e crianças têm vergonha ou se sentem culpadas pelas violências.” Conforme Débora, 90% dos casos de abuso sexual contra crianças ocorre em ambiente doméstico.

A delegada aponta que outra característica desse tipo de crime é a escalada crescente da violência. A maioria dos casos começa com discussões que passam a ser mais ríspidas, até o ponto em que se tornam físicas. Se escalada dos abusos não for contida, observa, pode culminar no assassinato das vítimas.

Famílias com problemas

Psicóloga faz 17 anos, Celina Darde é especializada em terapias cognitivas comportamentais e integra equipe da Clínica de Psiquiatria Avançada de Lajeado. Também presta consultoria ao poder público, como no Serviço de Assistência Especializada (SAE) e Cras.

Jornal A Hora – Em 2015, foram 17 casos de homicídios passionais consumados ou tentados no Vale do Taquari. Quais motivos levam a essas situações limites nas relações amorosas ou familiares?

Celina Darde – Entre os motivos estão o abuso de álcool e drogas, ciúmes patológico, transtornos de personalidade e relações de poder disfuncionais. Sempre houve conflito de interesses e expectativas diferentes sobre o casamento. Neste século, as exigências de perfeição nos papéis assumidos por cada cônjuge acabam prejudicando o convívio saudável. Transtornos de personalidade não tratados também dificultam a convivência.

A Hora – Em relação ao caso de Cruzeiro do Sul, o que pode levar um adolescente de 16 anos a participar do assassinato da própria mãe e quais as consequências psicológicas para esse jovem?

Celina – O fato não pode ser analisado como um julgamento. É preciso verificar o histórico e a forma com a qual esse menino foi se desenvolvendo nesta estrutura familiar. Um adolescente não tem a capacidade de controlar impulsos. Ele precisa de uma figura paterna para tal controle. A manipulação, pelo agressor, pode ter feito parte deste sistema familiar e o jovem também deve ter sido uma vítima. Poderá sofrer de estresse pós-traumático, depressão, pânico ou comportamento autodestrutivo. São sintomas comuns em vítimas de violência.

A Hora – Quais fatores contribuem para o tensionamento das relações e quais podem ajudar a estabelecer padrões positivos?

Celina – A origem dos conflitos nos relacionamentos tem variados fatores desencadeantes. Expectativas individuais, crenças, pensamentos, sexualidade, distorções cognitivas, poder, ciúmes, raiva, impulsividade e transtornos de personalidade são observados com frequência. Manter o diálogo e manifestar interesse em estar junto é essencial para um relacionamento, mesmo quando o casal decide pela separação.

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